quarta-feira, 15 de maio de 2013
”
A Lua que não dei” Cecílio Elias Netto
Compreendo
pais – e me encanto com eles – que desejariam dar o mundo de presente aos
filhos. E, no entanto, abomino os que, a cada fim de semana, dão tudo o que
filhos lhes pedem nos shoppings onde exercitam arremedos de paternidade. E não
há paradoxo nisso. Dar o mundo é sentir-se um pouco como Deus, que é essa a
condição de um pai. Dar futilidades como barganha de amor é, penso eu,
renunciar ao sagrado.
Volto a
narrar o que me aconteceu ao ser pai pela primeira vez. Lá se vão, pois, 45
anos. Deslumbrado de paixão, eu olhava a menina no berço, via-a sugando os
seios da mãe, esperneando na banheira, dormindo como anjo de carne. E, então,
eu me prometia, prometendo-lhe: ‘Dar-lhe-ei o mundo, meu amor.’ E não lho dei.
E foi o que me salvou do egoísmo, da tola pretensão e da estupidez de confundir
valores materiais com morais e espirituais.
Não dei o
mundo à minha filha, mas ela quis a Lua. E não me esqueço de como ela pediu a
Lua, há anos já tão distantes. Eu a carregava nos braços, pequenina e apenas
balbuciante, andando na calçada de nosso quarteirão, em tempos mais amenos,
quando as pessoas conversavam às portas das casas. Com ela junto ao peito,
sentia-me o mais feliz homem do mundo, andando, cantarolando cantigas de ninar
em plena calçada. Pois é a plenitude da felicidade um homem jovem poder
carregar um filho como se acariciando as próprias entranhas. Minha filha era eu
e eu era ela. Um pai é, sim, um pequeno Deus, o criador. E seu filho, a
criatura bem amada.
E foi,
então, que conheci a impotência e os limites humanos. Pois a filhinha – a quem
eu prometera o mundo – ergueu os bracinhos para o alto e começou a quase
gritar, assanhada, deslumbrada: ‘Dá, dá, dá…’ Ela descobrira a Lua e a queria
para si, como ursinho de pelúcia, uma luminosa bola de brincar. Diante da magia
do céu enfeitado de estrelas e de luar, minha filha me pediu a Lua e eu não lha
pude dar.
A certeza
de meus limites permitiu, porém, criar um pacto entre pai e filhos: se eles
quisessem o impossível, fossem em busca dele. Eu lhes dera a vida, asas de
voar, diretrizes, crença no amor e, portanto, estímulo aos grandes sonhos. E o
sonho da primogênita começou a acontecer, num simbolismo que, ainda hoje, me
amolece o coração.. Pois, ainda adolescente, lá se foi ela embora, querendo
estudar no Exterior. Vi-a embarcar, a alma sangrando-me de saudade, a voz
profética de Kalil Gibran em sussurros de consolo:
‘Vossos
filhos não são vossos filhos, mas são os filhos e as filhas da ânsia da vida
por si mesma. Eles vêm através de vós, mas não de nós. E embora vivam convosco,
não vos pertencem. (…) Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são
arremessados como flechas vivas’
Foi o que
vivi, quando o avião decolou, minha criança a bordo. No céu, havia uma Lua
enorme, imensa. A certeza da separação foi dilacerante. Minha filha fôra buscar
a Lua que eu não lhe dera. E eu precisava conviver com a coerência do que transmitira
aos filhos: ‘O lar não é o lugar de se ficar, mas para onde voltar.’
Que os
filhos sejam preparados para irem-se, com a certeza de ter para onde voltar
quando o cansaço, a derrota ou o desânimo inevitáveis lhes machucarem a alma.
Ao ver o avião, como num filme de Spielberg, sombrear a Lua, levando-me a filha
querida, o salgado das lágrimas se transformou em doçura de conforto com Kalil
Gibran: como pai, não dando o mundo nem Lua aos filhos, me senti arqueiro e
arco, arremessando a flecha viva em direção ao mistério.
Ora,
mesmo sendo avós, temos, sim e ainda, filhos a criar, pois família é uma tribo
em construção permanente. Pais envelhecem, filhos crescem, dão-nos netos e isso
é a construção, o centro do mundo onde a obra da criação se renova sem nunca
completar-se. De guerreiros que foram, pais se tornam pajés. E mães,
curandeiras de alma e de corpo. É quando a tribo se fortalece com conselheiros,
sábios que conhecem os mistérios da grande arquitetura familiar, com régua,
esquadro, compasso e fio de prumo. E com palmatória moral para ensinar o óbvio:
se o dever premia, o erro cobra.
Escrevo,
pois, de angústias, acho que angústias de pajé, de índio velho. A nossa
construção está ruindo, pois feita em areia movediça. É minúsculo o mundo que
pais querem dar aos filhos: o dos shoppings. E não há mais crianças e
adolescentes desejando a Lua como brinquedo ou como conquista. Sem sonhos, os
tetos são baixos e o infinito pode ser comprado em lojas. Sem sonhos, não há
necessidade de arqueiros arremessando flechas vivas.
Na
construção familiar, temos erguido paredes. Mas, dentro delas, haverá gente de verdade?
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